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Eles Eram Muitos Cavalos

Luiz Ruffato

COICE DE MESTRE

Textos / Resenhas

Angela Leite

Que não se engane o leitor mais incauto: os versos de Cecília Meireles, que se transformaram no título desse primeiro romance de Luiz Ruffato, prestam-se apenas a nos deixar despreparados para o que está por vir. Os “muitos cavalos” são a caleidoscópica face humana de São Paulo, vista sempre pelo ângulo mais sombrio, seja qual for o nível da escala social. E, não bastasse o enfoque implacável da cidade, o autor leva o experimentalismo formal às últimas (?) conseqüências nesse novo livro.

Quem conhece sua trajetória até aqui, no entanto, sabe da disposição cada vez menor de fazer concessões, quer na forma, quer no conteúdo. Em “Histórias de remorsos e rancores”, lançado em 1998 pela mesma e então pouco conhecida editora paulista Boitempo, esse mineiro de Cataguases já dava indícios de seu projeto literário. Ao retratar ali a cidade natal, Ruffato ignorou-lhe a fama de “berço do modernismo em Minas”, preferindo, como cenário, seus subúrbios, habitados por uma crescente legião de proletários.

Essa mesma dura realidade, esses mesmos protagonistas sem glamour voltariam a povoar as páginas da obra seguinte, “(os sobreviventes)” , que, a começar do título entre parênteses e em minúsculas, confirmava a intenção do autor de “radicalizar”. Era uma proposta tão inovadora/renovadora, especialmente em termos de linguagem, que não passou despercebida: o júri que em janeiro deste ano escolheu o Prêmio Casa de las Américas de Literatura Brasileira, em Cuba, conferiu-lhe menção especial e situou Ruffato na vanguarda de nossa prosa contemporânea.

Mineiramente, porém, ele ainda não havia mostrado todas as cartas. Soube-se mais tarde, em entrevista, que aquelas curiosas coletâneas de contos, onde os mesmos protagonistas transitam, às vezes, em histórias diferentes, constituem parte de um futuro romance, a ser finalizado depois que dois novos títulos forem escritos e publicados. Em suma, o que o autor realmente pretende é contar “pelo avesso” como se deu, em nome de um alegado desenvolvimento econômico, a proletarização de Cataguases (e, por extensão, de todo o Brasil periférico) durante a ditadura militar. Ora, para fazer isso dando uma verdadeira contribuição à literatura, Ruffato só via um caminho coerente – o da contínua experimentação, associada a uma espicaçante lucidez.

Mas, como Cataguases não está presente em sua obra por simples saudosismo, ele interrompeu temporariamente esse projeto para lançar “eles eram muitos cavalos” e demonstrar o quanto ainda é capaz de surpreender. Com o perdão para um trocadilho hípico, esse romance dá um “coice” em nossa auto-imagem de pátria-mãe gentil.
Desde a primeira página o ritmo do texto é veloz, quase alucinante, contraponto perfeito para a cidade-personagem onde o autor vive há anos. O caleidoscópio gira freneticamente em suas mãos, desenhando flagrantes de uma subterrânea vida paulistana. Entenda-se: “subterrâneo” aqui não se refere tão somente ao submundo, mas às misérias gerais, e nem sempre mostradas com tal crueza , que acometem globalmente a sociedade. Do oportunista a bordo de um Neon, que veste Giorgio Armani e trai o patrão com a própria mulher, à velha que amarga interminável viagem num fétido ônibus Garanhuns-São Paulo para rever o filho; do adolescente classe média que se suicida ao bebê cobiçado por ratazanas no fundo de um barraco – este, sem dúvida, um dos flashes mais primorosos e contundentes de todo o livro; dos operários que despencam de um frágil andaime à filha do beatlemaníaco, que, piercing e tatuagem como reza o figurino, sonha levar sua banda de rock às paradas de sucesso… Judeus, italianos, mineiros, nordestinos, burgueses, remediados, pilantras graúdos e miúdos, gente, enfim, vivendo como pode o duro viver urbano – o desfile de mini-enredos é tão extenso quanto heterogêneo, num esforço muitíssimo bem-sucedido de sintetizar a babilônica Sampa.

“Eles eram muitos cavalos” consegue ser, talvez mais que o pretendido, um abrangente painel humano da maior capital brasileira. Ruffato, observador arguto e sensível, não deixa passar o menor detalhe na composição de cada fragmento, o que dá a seu trabalho uma dimensão sociológica, quase histórica. Eis uma amostra, ainda que cruel, do tipo de sociedade que o Brasil teria gerado nas últimas décadas do segundo milênio, poderão dizer futuros estudiosos de nossa antropologia.

A leitura, por todos esses motivos dolorosa, parecerá ainda mais árdua àqueles que buscam na literatura primordialmente um lazer. O autor prefere arriscar-se a ter um público restrito, dificultando propositalmente a caminhada de seus leitores. Assim, ele não hesita em colocar dois pontos antes de frases, em inverter parênteses e começar períodos por ponto final, em desprezar vírgulas obrigando-nos a ler no seu ritmo, em economizar palavras a ponto de obscurecer o sentido do texto, forçando uma releitura. A ousadia chega ao extremo de deixar em branco (ou melhor, em negro) a penúltima folha. Só se pode louvar tamanha coragem. Afinal, foi subvertendo e reinventando que Guimarães Rosa, Saramago, James Joyce, por exemplo, marcaram presença na história da Literatura.

Crítica do livro “Eles eram muitos cavalos”,
de Luiz Ruffato, no Caderno Ideias do
Jornal do Brasil – 29/9/2001

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