Publicado em Deixe um comentário

Faltam Palavras

Textos / Contos

Angela Leite de Souza

No começo, as mudanças foram sutis e lentas. Tão lentas e tão sutis que mesmo eu
mal as percebi. Notei quando os pedais do freio e da embreagem do carro ficaram
inexplicavelmente baixos. Um ajuste de dois dentes na regulagem do banco deveria ser o
bastante.

Passei a usar uma palmilha dentro dos sapatos. E mandei aumentar o salto de todos
eles.

Mas as prateleiras da estante começaram a exigir escada. As da cozinha, um banco.
Na hora das refeições, uma ou duas almofadas sobre a cadeira tornaram-se
indispensáveis. Isso, é claro, enquanto ainda era capaz de manejar aqueles talheres cada vez
maiores e mais pesados.

Mas eu disfarçava bem esses expedientes, para que ninguém desconfiasse. O que
era uma grande bobagem. Afinal, minha mulher e meus filhos só pareciam mesmo
interessados em cuidar do próprio umbigo. Ninguém me disse ao menos “O que está
havendo com você, que fica arrastando banquetas e escadas pela casa?”, nem chegou
alguma vez a me perguntar “Tudo bem?” Nada. Minha família simplesmente me ignorava,
a verdade é esta.

Chegou depois o tempo em que a menor atividade cotidiana requeria de mim
qualidades de atleta. Coisas assim como alcançar a saboneteira, fazer a barba diante do
espelho, pendurar a toalha no cabide, apertar um mero botão de elevador.

Momento terrível aquele em que me senti uma criancinha enquanto tentava subir na
cama para dormir.
Sustos mais tremendos, porém, ainda me aguardavam.

Foi assim quando, de repente, um focinho imenso veio me cheirar: o daquele
gigantesco poodle que eu tanto carregara no colo e que, nos já velhos tempos, levava pela
coleira para dar umas voltas.

A partir de então, foram só sobressaltos. Os passos do pessoal pela casa, por
exemplo, equivaliam a terremotos. Teriam, enfim, dado pela minha ausência? Estariam me
procurando? Ou eu somente atingira a dimensão de minha insignificância? Nunca saberia,
porque suas vozes iam se tornando os sons remotos de uma longínqua trovoada.

Minha existência transformara-se em incessante batalha para não ser devorado por
alguma criatura maior que eu. Nessa corrida frenética rumo ao átomo, ia percorrendo todo o
espectro biológico. Ao ingressar no reino lisérgico dos protozoários, dos micróbios e dos
vírus, atinei com algo surpreendente: a condição de ameba não me surrupiara o principal
vestígio de humanidade, minha inteligência. Foi ela que fez de mim um observador nesse
mundo onde a vida se multiplica e se extingue em proporções cósmicas.

Lembro-me – pois a memória também me ficara intacta – do momento em que
passei, em estado líquido, a fluir vertiginosamente por lugares que nunca saberia descrever.
Àquela altura, nova constatação me aturdiu: restara-me a alma, muito mais humana que o
intelecto. Só a alma seria responsável pelo estranho sentimento que experimentava agora,
uma nostalgia, logo transmudada em saudade urgente, de certo tempo e certo lugar
impossíveis de definir.

Mas um turbilhão que pode ter durado séculos ou segundos me envolveu. E a
consciência, de algum modo, teve sua trégua. Despertou em forma de sensações, ora de
paz, ora de angústia, nada muito preciso, nada suficientemente compreensível para aquele
ser em que me transformara, ao mesmo tempo cônscio e ignorante de si mesmo. Um ser
que ainda empregava a palavra eu ao avaliar a realidade.

Esse resquício de primeira pessoa vislumbrou o momento seguinte.
Não teve tempo, porém, de apreender-lhe o significado por inteiro. Afinal, faltam
palavras quando se adentra no eterno agora.

Conto publicado no Suplemento Literário
Jornal Minas Gerais – 2013 (julho / agosto de 2013)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *